MEMÓRIA DE UMA MADRUGADA

Saí de casa às quatro da manhã e
dirigi-me para o aeroporto. Destino previsto – Amesterdão. Destino inesperado
– Portugal e a Liberdade reconquistada.
- Não pode passar! - Disse
amavelmente um soldado. - Mas estou atrasado! E tenho de apanhar um avião!
– Ripostou ele. - A tropa justificará tudo!
Assim, sem esperar, fiquei a
saber que algo se passava em Lisboa. Regressei a casa, já com a rádio ligada e
numa ansiedade extrema. Subi as escadas a correr, acordei a família e liguei a
telefonia. Cada notícia, cada marcha, eram por mim escutadas e sorvidas numa
tentativa de descodificação. Um golpe? Mas de quem? – O cérebro começou a
funcionar como uma roleta e vários nomes começaram a surgir. Kaúlza? Spínola?
Um movimento de oficiais? Quem? A informação disponível era escassa. Para cada
palavra ouvida na rádio, tentava descobrir o significado real.
Quando me pareceu já não haver
dúvidas, contrariando os pedidos feitos pela rádio, fui para a rua. O futuro,
há tanto desejado, esperava-me. A luz aparecia ao fundo do túnel.
Sim, saí para a rua como hoje, 40
anos volvidos. Sorriso nos lábios e em breve um cravo no peito. Hoje, no
entanto, mal passei a porta, ouviu um «viva Salazar!». Um indivíduo,
modestamente vestido, franzino, dava passos apressados, parava, gesticulava,
pronunciava palavras que mais pareciam grunhidos e, olhando para as janelas,
soltava o seu grito blasfemo. Eu, que me julgava incapaz de tal sentimento, odiei-o
e, secretamente, com a serenidade possível, relembrei os tempos do «velho
ditador».
Relembrei os saltos até Paris. As
peregrinações à Editora Maspero, onde passava parte dos tempos livres.
Lendo títulos, folheando livros, comprando jornais... Todas as oposições do
mundo ali estavam representadas. Ali comprou o “Avante” da
clandestinidade, publicações chinesas, livros soviéticos, livros cubanos,
alguns brasileiros, outros portugueses... A fartura era tanta que me acontecia
olhar desconfiado para o cidadão do lado, que também folheava publicações em
português. Sempre a sombra da PIDE/DGS omnipresente!
Tomara conhecimento nas décadas 1950/70
com nomes aqui proibidos. Ao acaso, lembrava Jorge Amado, Fidel Castro, Che
Guevara, Dolores Ibarruri (a tal que preferia morrer de pé do que viver de
joelhos) e Amílcar Cabral; também Mário Soares, Raul Rego, José Magalhães
Godinho e Salgado Zenha, homens publicados sobretudo em tempo de eleições
(poucas e duvidosas); Aquilino Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes, Urbano Tavares
Rodrigues e tantos outros. Claro que também ia lendo os clássicos... Marx,
Engels, Lenine, Politzer, Cunhal, Sartre, Marcuse…
Relembrei os filmes que via lá
fora e que em Lisboa não podia ver. Às vezes, por motivos bem ridículos... Mas
sempre «a bem da nação, da moral e dos
valores ocidentais». Outros filmes, conseguia ver, mas de tal maneira
mutilados, nos diálogos ou nas imagens, que constituíam verdadeiros atentados à
cultura.
Relembrei alguns cantores
«malditos»: o Luís Cília, o Letria, o José Mário Branco, o Adriano, o Zeca
Afonso, o Tordo (e a sua dupla com Ary que nos daria algumas das mais belas
canções portuguesas). E tantos, tantos outros. Relembrei as eleições de
Humberto Delgado, o sequestro do “Santa
Maria” e as Guerras no Ultramar.
Relembrei as notícias que não
podia ler ou que eram deturpadas. O suicídio que não passava de um acidente ou
de morte natural. Como podia ele ser justificado se tudo era um paraíso? – O
desemprego – esse não existia! Pois pudera! – Os desempregados emigravam... Mas
porque se emigraria se cá se vivia tão bem? – A Guerra no Ultramar? – Mera propaganda comunista. Não havia
problemas! – Os soldados embarcavam a cantar, enviavam mensagens às famílias em
todos os Natais e quando regressavam eram recebidos com vivas, beijos e
abraços. Tudo normal. Por vezes, até eram recebidos festivamente pelas bandas
musicais das suas terras. Não regressavam todos? Não regressavam inteiros?
Caluda! Portugal tinha de ignorar. As famílias que sofressem individualmente no
recato das suas casas.
Os portugueses eram um povo
castigado. Uns sofriam no espírito. Não podiam (ou podiam dificilmente) saber
mais do que aquilo que lhes era debitado pelos órgãos de comunicação. Outros
sofriam no corpo. Heroicamente resistiam. Hipotecavam as suas próprias vidas.
Outros, pior ainda, aliavam as duas espécies de sofrimento – o físico e o
moral. Outros ainda, por cá passavam sem dar por isso, ignorantes, distraídos –
propositadamente ou sem querer. Eram as raízes criadas pelo próprio sistema.
Raízes que se aquietavam na tranquilidade de nada fazer para que tudo ficasse
na mesma. Antes assim que pior. Os outros que pensassem por eles. Finalmente,
certamente uma minoria – aqueles que seriam os verdadeiros fascistas, os homens
do regime, os homens do capital, os homens sem rosto nem pátria. Tanto podiam
explorar aqui como noutro sítio, com dinheiro e cúmplices em todo o lado, com
todo o tempo para esperar... Anos mais tarde, voltariam à tona de água para
pedir as indemnizações «devidas por um Estado Democrático». A palavra Democracia
deveria, no entanto, ser considerada ofensiva em semelhantes bocas.
Todos estes acontecimentos e
considerações percorreram em tropel a minha memória, memória de uma madrugada
em que tudo mudou, em que a ruptura se consumou. Entretanto, rua abaixo,
ouviam-se os tais vivas a Salazar. Em breve, porém, o «ódio» se
transformaria em pena. O
pobre, segundo disseram algumas pessoas que o conheciam, tivera grandes
desgostos familiares, tornara-se alcoólico e chegara a estar internado num
hospital psiquiátrico. Agora, vagueava ao acaso, como um náufrago, pelas ruas e
avenidas desta cidade, que lhe fora madrasta. Desculpei-o no meu íntimo.
Tratava-se afinal de um pobre débil mental.
Gabriel de Sousa/2014