quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

TELE-INSEGURANÇA
Por EDUARDO PRADO COELHO
«Público» Quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2004

Vi noutro dia na SIC as esfarrapadas desculpas de diversos profissionais no arranjo de televisores, que pediam balúrdios para tarefas tão simples como mudarem um fusível que tinha sido deliberadamente estragado. Todos eles argumentavam com a fonte de alimentação que tinha sido necessário refazer, com a prevenção de futuros acidentes, com a limpeza geral do aparelho. Mas houve um que foi mais sincero e disse que não podia fazer um orçamento relativo apenas à mudança de um fusível. Perguntou a entrevistadora: "Mas então anda todo o mundo a enganar todo o mundo?". E ele reconheceu que sim, mas passou para um lugar-comum: claro, mas o pior é o que se passa lá em cima, entre os políticos e os grandes homens de negócios.

Uma amiga minha teve o carro assaltado numa cidade na periferia de Lisboa: vidro partido do lado do condutor, pára-choques derrubado, porta-luvas arrombado, rádio roubado. Telefonou para a sua tão celebrada companhia de seguros, a que daremos o nome fictício de Tele-insegurança. Reboque, não, só em caso de acidente. Muito bem. Lá acondicionou o vidro estilhaçado, lá retirou o desfeito pára-choques e lá foi até à esquadra, como se atravessasse uma estrada do Iraque – com medo de que a viatura se desfizesse na primeira esquina. Na esquadra, foram optimistas: "Tele-insegurança, vai ver onde se foi meter!" O carro lá ficou e no dia seguinte foi objecto de peritagem. Mas como não era possível andar com um vidro partido e encontrar na manhã seguinte uma família de desabrigados a viver lá dentro, a minha amiga substituiu o vidro, do que avisou a zelosa seguradora. Disseram para enviar a declaração e a factura.

Foi aqui que as coisas se tornaram insólitas. A voz disponível que surgia do outro lado do fio telefónico começou a achar que a primeira declaração não era suficiente e que precisavam de uma segunda (nisto a polícia tinha inteira razão), e só então a seguradora enviaria a sua competente peritagem. A polícia passou uma segunda declaração, com o ar paciente de quem já estava habituada a estas coisas.

Isto foi no Outono, início de Outubro, caíam as folhas, anoitecia mais cedo. Estamos no limiar da Primavera, cantam os passarinhos, as árvores recuperam o verde perdido, o sol ilumina-nos os dias. E contudo desde então a minha amiga passa o mais inseguro dos seus dias a telefonar para uma seguradora fantasma, onde invariavelmente ouve a seguinte resposta: vamos ter de passar para o departamento de sinistros, mas eles agora estão ocupados, por isso falamos logo que pudermos. Mas não podem, nunca podem, jamais puderam.

Colocam-se aqui várias interrogações. Será que a seguradora existe ou é apenas uma ficção maliciosa? Será que departamento de sinistros é um departamento sinistro? Será um departamento de uma só pessoa que gosta muito de falar ao telefone sobre o tempo, o Euro, a Casa Pia e as fantasias do Alberto João Jardim? Será que querem fazer tudo para não pagar? A minha amiga mantém o pára-choques no banco traseiro e o porta-luvas afaga generosamente os joelhos de quem a acompanha? Entre os senhores dos fusíveis e os senhores da Tele-insegurança, qual a diferença? Uma questão de escala: a escala do roubar.

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