terça-feira, 23 de março de 2004

A SABEDORIA DOS ARRUMADORES
Por Eduardo Prado Coelho
in «Público» de Segunda-feira, 22 de Março de 2004

Houve um tempo em que figura dos arrumadores de carros não existia. Depois, começaram a surgir por toda a cidade, e nós habituámo-nos a dar uma gorjeta, que é a nossa contribuição para a recuperação dos drogados (grande parte deles tem esse estatuto). Estabeleciam zonas privilegiadas, disputavam carros, procuravam estabelecer os seus reinos. De uma maneira geral, são simpáticos. Mas nós sempre tememos que, se não déssemos a nossa prestação, eles pudessem exercer formas de retaliação (como acontece com os guias em Marrocos, que, se a gente os rejeita, se arrisca na manhã seguinte a ter os pneus do carro furados).

Os arrumadores agitam os braços num balanceamento muito característico. Li um romance português em que o autor escrevia a dada altura: "avançou para mim abanando os braços como se fosse um arrumador de carros". A frase é ininteligível para um leitor francês: a figura mencionada não existe. Eles, os arrumadores, conversam, falam do bom tempo que esteve ontem, do mau tempo que virá amanhã, das dificuldades da vida. Ás vezes garantem que o carro fica ali bem, embora seja um local proibido. Quando voltamos, temos uma multa e o arrumador desapareceu há muito. Terminou o dia de trabalho, que tem os seus momentos alto na chegada e partida do emprego ou nos horários das sessões de cinema.

Noutro dia, cheguei ao Saldanha e, por indicação de um deles coloquei o carro num lugar que devo reconhecer que era privilegiado. Aproximou-se então o arrumador, com os ombros assimétricos, o olhar oblíquo, cambaleando no andar e na fala. E estendeu a mão. Eu escancarei o porta-moedas para demonstrar que não tinha uma só moeda. Mas avisei que ia lá dentro comprar umas coisas para voltar com moedas de troco. Ele olhou-me como se estivesse diante de um vigarista, que ocultasse as moedas num cinto escondido à volta da barriga, e rosnou com manifesto azedume: "Mas que seja depressa que eu tenho de ir jantar". Admirei aquela disciplina alimentar numa pessoa que as vicissitudes da vida poderia ter tornado desleixada quanto às horas das refeições. Estava perante um verdadeiro modelo. A verdade é que, oito minutos depois, ele já tinha ido embora. Pensei que nestes em que a retoma vai e não vem, uma poupança, mesmo modesta, é sempre desejável: e guardei as moedas.

Houve outro arrumador que também durante anos se ocupou do meu carro. Precisamente na mesma zona, mas mais perto da Maternidade Alfredo da Costa, Recusava-se quase sempre a que eu lhe desse uma gorjeta. Um dia decidi perguntar a que se devia esta generosidade. E ele respondeu com ar fraternal e cúmplice. "Eu sei ir buscá-lo onde o há". Procurei o espelho mais próximo para confirmar se já havia sinais exteriores de que eu era um funcionário público com um salário corroído pela inflação e a Manuela Ferreira Leite. Achei que não. Mas aquele arrumador era como a Blimunda de Saramago: via as almas por dentro.

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