domingo, 6 de março de 2005

«EMPURRA-EMPURRApor Ricardo Garcia

Quem anda nos transportes, conhece bem a mania. É uma conduta clássica, já há muito incorporada no quotidiano das viagens colectivas, afecta democraticamente os mais variados tipos de utentes. Sejam velhos, sejam novos, homens ou mulheres, ricos ou pobres, não há quem resista à curiosa tentação de se aglomerar junto à porta de entrada do autocarro ou do metro, mesmo que haja abundante espaço mais lá para dentro.
O raciocínio por trás deste acto de autêntica solidariedade corporal tem, no fundo, um cunho egoísta. E explica-se facilmente. Na cabeça de quem está à espera de transporte numa paragem, a principal preocupação é entrar no autocarro, tão logo ele chegue. Não importa o estado de compactação humana no interior da viatura. O que vale é garantir a passagem do espaço exterior para o interior.
Vencido este obstáculo, o utente é tomado por um reconfortante pensamento: "Eu já entrei, e daqui já ninguém me tira". E isto funciona como um desestímulo a posteriores movimentos. Conclusão: fica tudo amontoado à porta, o que está na origem de vários efeitos colaterais.
Um deles é a dificuldade de entrada de novos passageiros. Às vezes, ainda se ouve o tradicional "um passinho à frente, se faz favor", usualmente proferido em desespero de causa por aqueles que ainda estão nos degraus e que, esmagados entre bocados de corrimão, malas de senhora, cotovelos alheios e uma ocasional nádega, só conseguem mexer os lábios.
Mas o apelo não resulta. Daí que alguns condutores invoquem o recurso, bastante subtil, aliás, de ir fechando a porta tentativamente, através de hábeis toques sucessivos nos comandos. Com isso, empurram à força os últimos passageiros, esparramando as suas partes comprimíveis até preencherem os espaços ainda vazios. Verdade seja dita, é um bom exemplo de como maximizar a ocupação de áreas públicas.
O fenómeno repete-se no metro, mas com algumas variantes. Aqui a justificação é outra e o que impera é a lógica do "vou descer já", mesmo que o passageiro tenha entrado no Cais do Sodré com a intenção de sair só em Telheiras. Com isso, os utentes aglutinam-se naquela espécie de hall entre as portas de entrada. Mesmo havendo espaço de sobra nos corredores, ninguém arreda pé, o que revela uma apetência pelo contacto físico que, salvo melhor opinião, costuma dar mais certo em circunstâncias diferentes.
O inevitável empurra-empurra na hora de deixar o comboio acabou por se tornar num ameno momento de convívio, que muito enaltece o dia-a-dia do metro. O grupo dos que estão a bloquear a saída - no qual pontificam pessoas com a habilidade de sempre estar no caminho, mesmo quando tentam afastar-se - interage de forma cordial com o grupo dos que pretendem deixar a carruagem. Registam-se, com frequência, fraternas trocas de olhares, ternos movimentos corporais para abrir passagem, comentários afectuosos e até mesmo, em dias inspirados, evocações laudatórias da ascendência materna alheia.
Do lado de fora, também se nota um contagiante carinho entre os passageiros que aguardam para entrar no comboio. Há muita gente que, investida em elevado contentamento ao ver a turba que vai a sair, perfila-se diante das portas, afunilando a passagem, certamente para poder estreitar ainda mais os laços de amizade solidária que une os passageiros do metro.
Podem dizer o que quiserem. Mas, sem estes ajuntamentos de gente alegre e descontraída à porta dos autocarros e do metro, a função social dos transportes públicos ficaria muito diminuída. »
in «Público» 2005-03-06

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