domingo, 23 de setembro de 2007

O GATO BRANCO
(mini-conto)

No crepúsculo da minha vida, já com oitenta e muitos anos, relembro com saudade aqueles olhos grandes, vivos e meigos; mais tarde, suplicantes e tristes; por fim, sem brilho… Mas eu vou contar!
*****
No ano em que acabei a instrução primária, como se chamava então, meus pais tinham prometido dar-me um gatinho branco se eu passasse no exame. Logo combinei que, se fosse gata, seria a Branca de Neve; se fosse gato, chamar-lhe-ia Esquimó.
Passei no exame e, no dia seguinte, meu pai trouxe para casa aquele que seria a partir daí o meu companheiro de todas as horas. Era um gato e baptizei-o como previsto. O Esquimó era muito meigo e brincalhão. Adorava brincar com cordéis e bolas de papel. Cada vez que eu chegava a casa, estava à minha espera no hall da entrada. Gostava de dormir na minha cama, junto aos pés, e eu deixava.
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Entrei para o Liceu e, à medida que os estudos avançavam e se tornavam mais difíceis, comecei a ter menos tempo para ele. Ao chegar a casa, ele lá estava para me saudar. Afagava-o rapidamente e metia-me logo no quarto para estudar. Fechava sempre a porta pois, de outro modo, o Esquimó entrava e não pararia de miar, até eu lhe dar colo, impedindo-me assim de trabalhar. Um dia, em que me esqueci de fechar a porta, ele entrou e saltou para os meus ombros, arranhando-me, mas nada de especial... No entanto, dei-lhe um grito e ele fugiu assustado. Nessa noite já não foi dormir comigo.
*****
Deixou de me ir esperar à chegada a casa e andava triste pelos cantos. Quase deixou de comer, só bebia água.
Um dia, minha mãe chamou-me dizendo que não sabia onde ele estava. Procurámos por baixo dos móveis e não o encontrámos. Tive um mau pressentimento e corri para a janela da marquise das traseiras. Em baixo, uma mancha branca imóvel fez-me adivinhar o pior.
Desci a escada a correr e bati à porta da vizinha da cave. Pedi para entrar e corri para o quintal. Chamei-o pelo nome e ele olhou-me com os seus olhos grandes. Tristes mas lindos, suplicantes. Parecia que me tinha esperado para, enfim, poder morrer. A sua cabeça descaiu, manteve os olhos muito abertos, mas terrivelmente baços. Chorei e aquela imagem e aqueles olhos, acompanharam-me pela vida fora.
*****
Durante mais de setenta anos, pensei nele muitas vezes, sentindo-me culpado pela sua morte. Obviamente que ele morreria, de qualquer outro modo, anos mais tarde, mas assim tinha sido uma morte antecipada e por minha culpa. Nunca ninguém me tirou da cabeça que tinha sido um suicídio, um modo de me chamar a atenção, um modo de me expressar a sua amizade e a sua dor, um meio de me dizer Adeus e de me poder olhar olhos-nos-olhos por uma última vez.
Agora, que se aproxima a minha vez de partir, penso no Esquimó com muita saudade. Houve amigos, que entraram e saíram da minha vida, outros que ficaram até agora, mas não tenho vergonha em dizer, que ele terá sido o meu melhor e mais fiel companheiro.
Talvez em breve o vá encontrar. Se isso acontecer, vou pedir-lhe perdão e tentaremos os dois recuperar o tempo perdido.

Gabriel de Sousa
NB - 5º Prémio no X Concurso Literário da Academia Antero Nobre – 2007 (Pedreiras – Porto de Mós)

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