sábado, 18 de agosto de 2012

AVÔ TOZÉ,
PESCADOR E POETA
(conto)

António José era um pescador muito popular na sua terra. Toda a gente gostava das histórias que ele contava, descrevendo os momentos de perigo que passara no mar durante a faina da pesca. A mulher, os filhos e a nora ajudavam-no na reparação das redes e na venda do pescado. Tozé, como todos o conheciam, passava os momentos livres a fazer versos sobre tudo e sobre nada, quadras que ele imaginava com enorme facilidade e que pedia aos amigos para escrever naquilo que estivesse mais à mão, fosse a margem de um jornal, uma toalha ou um guardanapo. Quando chegava a casa, metia os pequenos fragmentos de papel numa velha caixa de sapatos. A mulher, como ele, também não sabia ler nem escrever. Os filhos tinham a instrução primária. De vez em quando, pedia aos filhos para lhe lerem alguns versos.

Quando nasceu o seu neto Tiago, o coração do Tozé quase explodiu de alegria. Era como se fosse pai pela terceira vez. A “caixa dos versos” continuou a encher-se de bocadinhos de papel, agora em ritmo mais acelerado.
Toda a família jurou que Tiago, contrariamente ao resto da família, iria estudar. Os tempos tinham mudado e uma pessoa sem instrução tinha muita dificuldade em arranjar emprego. Logo que o “Tiaguinho”, como ele lhe chamava com ternura, foi para a escola, o avô perguntava-lhe frequentemente se já sabia ler. Um dia, a resposta há tanto esperada fez brilhar os olhos de António José:
- «Já comecei a ler, avô, mas porque me fazes essa pergunta tantas vezes? E há tanto tempo?».
- «Tenho uma caixa cheia de versos feitos por mim. De vez em quando, vou pedir-te para me leres alguns, pode ser?».
- «Está bem avô!».
Assim aconteceu e, passados alguns anos, até o Tiago já escrevia poesias que o avô ouvia embevecido.

Quando chegou a hora de António José partir para a viagem sem regresso, a caixa lá ficou, abandonada, mudando de sítio ao acaso das limpezas da casa. Um dia, Tiago resolveu colocá-la no sótão, não fosse ela perder-se. Quando já tinha completado o 12º ano e entrara na faculdade, lembrou-se um dia de ir revisitar a caixa do avô Tozé. Que saudades tinha dele. Da sua calma, do seu carinho e da sua bondade. Releu algumas quadras e, a partir daí, lia quase todos os dias algumas, atando com um elástico as que já tinha lido.

Num frio domingo de Dezembro, em que não apetecia sair de casa, Tiago, depois do almoço,  deitou-se um pouco com a intenção de dormir uma sesta. Olhou, porém, para a caixa do avô, que agora estava na estante do seu quarto, e logo saltou da cama para a ir buscar. Remexeu os bocados de papel de todos os tamanhos e feitios, que ainda não tinha lido, e chamou-lhe a atenção um, escrito com letras grossas de uma caneta de feltro verde. Pegou nele e leu:
«A poesia aqui deixada,
Obra dum analfabeto,
Talvez seja publicada
Graças ao meu querido neto.».
Um ano depois, pelo Natal, aparecia nos escaparates das livrarias o livro “António José Seabra – Quadras de um poeta esquecido”. Onde quer que ele esteja, Tozé sentiu decerto uma alegria quase igual àquela que sentira quando o neto nasceu. Era um poeta esquecido, mas finalmente relembrado. Só agora podia repousar em paz.

Gabriel de Sousa

NB: 2º Prémio nos 42ºs Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo – 2012 (Fuseta)

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