MEMÓRIA PERDIDA
À
medida que se aproximava a data da reforma, Ricardo Pereira ficava mais
ansioso. Ia poder, finalmente, fazer aquilo que lhe apetecesse, ia ter tempo
para se divertir e para viajar. Para viver!
Estava
quase a completar os sessenta e cinco anos e cada idade, como é comum dizer-se,
tem os seus encantos. Era agora um homem mais calmo, mais compreensivo, mais
experiente e mais maduro.
O
grande dia chegou. Fizeram-lhe uma festa, ofereceram-lhe uma prenda e ouviram-se
lindos discursos. Assim deixava o “mundo”, que fora o seu durante tantos e
tantos anos. Subira na profissão, degrau a degrau, sempre a pulso, tendo
atingido o cume da carreira alguns anos antes de partir. Agora, punha ponto
final numa longa vida de trabalho.
Ao
voltar para casa naquela noite, sentia uma mistura de sentimentos, em que
predominava já a saudade de tantos momentos que não se repetiriam mais. As
“grandes férias” iam começar. Afinal, era o que nos últimos meses mais tinha
desejado!
Os
primeiros tempos foram uma festa. Teve tempo para fazer muitas coisas que antes
não fazia. Voltou a ler bons livros e a ter tempo para escrever. Fez uma longa
viagem ao Oriente com Lurdes, a sua companheira de mais de trinta anos. Visitou
a Coreia do Sul, o Vietname, Hong-Kong e voltou a Macau, onde estivera quando o
território ainda era administrado pelos portugueses.
Deu
muitos passeios pelo país, sobretudo pelo interior norte, que praticamente não
conhecia. Tinha, em suma, mais tempo para si. Quase se poderia dizer que tinha
todo o tempo do mundo. Isto, porém, levava a que reparasse em certos pormenores
que, se ainda estivesse no activo, nem teria tempo para observar nem para
sentir.
Quem
disse que cada idade tem os seus encantos, esqueceu-se decerto que os anos
trazem sobretudo os desencantos. Os músculos tornam-se flácidos, impedindo
esforços que se faziam antes com facilidade. Os ossos tornam-se frágeis e tem
de se ter muito cuidado, evitando movimentos bruscos. A visão enfraquece e
vê-se cada vez pior, apesar do uso dos óculos. A princípio ainda se faz um
esforço para, por exemplo, ler as bulas dos medicamentos. Depois, desiste-se ou
usa-se uma lupa. A audição começa a piorar. Pede-se às pessoas para repetir,
mas elas muitas vezes demonstram o seu enfado. A pouco e pouco, olha-se para os
lábios, não se ouve e sorri-se, sem compreender muitas das vezes o que os
interlocutores estão a dizer.
O
corpo, pouco a pouco, deforma-se e fica semeado de sinais, manchas e verrugas.
A coluna ressente-se com as mudanças de tempo. As doenças aparecem. É todo um
catálogo!
Assiste-se
ao desaparecimento de familiares e amigos. E não só. Ao morrer alguém, logo
comparamos a idade do “infeliz” com a nossa.
Tentamos
adivinhar, a medo, como será a nossa despedida. Como será “isto”, depois de
partirmos.
Ricardo,
que tantas vezes maldissera a vida absorvente que levava e que não lhe deixava
tempo sequer para a família, começou a desejar que a vida voltasse para trás.
Como se sabe, porém, nunca ninguém o conseguiu, nem jamais o conseguirá.
Certo
dia, Ricardo foi ao centro da cidade e, chegado lá, andou a ver montras e
esqueceu-se completamente do que tinha ido lá fazer. Curiosamente, de manhã,
tinha dito a sua mulher que iria marcar uma consulta no médico, pois achava que
andava muito desmemoriado, tendo dificuldade em se lembrar de nomes, sobretudo
de pessoas, no meio de uma conversa. Só reparou que tinha ido e vindo sem
tratar de nada, quando já estava de regresso a casa. Voltou no dia seguinte.
Tinha
ido a mais médicos durante estes quase três anos de reforma, do que durante o
resto de toda a sua vida, mas agora andava mesmo preocupado, pois notava sinais
de que algo não corria bem. Por vezes faltava-lhe vocabulário, tanto a falar
como a escrever. Tinha dificuldade em se concentrar, repetindo vezes sem conta alguns
rituais. Fazia determinadas tarefas e logo de seguida ficava na dúvida se as já
tinha feito.
No
dia marcado, foi ao médico que, atendendo à sua idade e aos sintomas referidos,
o aconselhou a consultar um psiquiatra.
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- Senhor Pereira, embora eu não o possa
afirmar de modo inquestionável, parece-me detectar em si os primeiros sintomas
de uma doença de que já terá ouvido falar. Já é conhecida há mais de cem anos, mas
agora fala-se mais porque as pessoas vivem mais tempo…
- ?
- Refiro-me à doença de Alzheimer!
- Segundo tenho ouvido dizer não há nada a
fazer.
- Há sim! Sempre se pode fazer alguma coisa
mas, realmente, esta doença é como a idade, não se pode parar. Vai fazer umas
análises e vários exames que vou requisitar e depois se verá. Para já, continue
a manter-se em actividade permanente, não só física mas sobretudo mental! Leia,
escreva. Faça passatempos.
- Assim farei, senhor Doutor.
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Logo
que chegou a casa, Ricardo ligou o computador e foi consultar a Internet, onde encontrou muita
informação.
A doença de Alzheimer consiste, grosso modo, na morte das células
cerebrais e na consequente atrofia do cérebro. É progressiva, irreversível e
com causas e tratamentos ainda desconhecidos. Começa por atingir a memória e,
progressivamente, atinge todas as outras funções mentais, levando à perda da
autonomia dos doentes. Em fase terminal, provoca a incapacidade de realizar as
tarefas mais primárias, os pacientes deixando mesmo de reconhecer as pessoas
mais chegadas.
O
único modo de diagnosticar a doença, com segurança, seria o exame do tecido
cerebral, obtido através de uma biopsia.
«Ao princípio, observam-se pequenos
esquecimentos, perdas de memória, normalmente aceites pelos familiares como
parte do processo normal de envelhecimento, que se vão agravando gradualmente.
Os pacientes tornam-se confusos e, por vezes, agressivos, passando a apresentar
alterações da personalidade, com distúrbios de conduta. Acabam por não
reconhecer os próprios familiares e até a si mesmos quando colocados frente a
um espelho».
Ricardo
ficou ainda mais aterrorizado com o que tinha lido e resolveu não contar nada à
mulher, para não a preocupar, antes de saber o resultado das análises e exames
que o médico lhe mandara fazer.
Os
auxiliares de diagnóstico requisitados pelo Dr. Silveira vieram confirmar, na
medida do possível, o que ele tinha previsto. Receitou-lhe vários remédios,
renovou o conselho de manter a mente em actividade e pediu-lhe para marcar uma
nova consulta quando acabassem os medicamentos.
Ricardo
chegou a casa e contou tudo, finalmente, à sua companheira, acrescentando:
- Dizem que a doença se desenvolve muito
lentamente, até nos tornarmos completamente dependentes. Não sei o que o futuro
me reserva, nem sei bem como tudo isso irá acontecer, mas desde já te digo que
não quero chegar a esse ponto!
- Tem calma, Ricardo. Devias ter-me contado
antes, pois para mim é também difícil receber a notícia assim de chofre. Temos
enfrentado tantas situações menos boas…
E os
dias começaram a escorrer por entre os dedos, como se fossem areia, com a
doença a desenvolver-se de forma insidiosa e quase sem darem por isso.
Ricardo
bem tentava ocupar o seu tempo, sobretudo a escrever, utilizando o computador
adquirido quando se reformara.
Pouco
a pouco, no entanto, começou a ter dificuldades em executar certas actividades
manuais, sentindo-se ainda mais desajeitado do que já era antes. Custava-lhe
fazer contas, guardava coisas em sítios de que depois não se lembrava. Tinha o
pavor de perder objectos. Irritava-se com facilidade. Hesitava muito, antes de
tomar alguma decisão. Cada vez tinha maiores dificuldades em se recordar de
certos nomes, mas agora já nem fazia esforço para os relembrar.
Passaram-se
meses, alguns anos. Já sentia pouco interesse por aquilo que o rodeava, evitava
sair pois ao afastar-se, tinha dificuldade em regressar a casa, faltando-lhe o
sentido de orientação.
Sentia
que Lurdes o andava sempre a vigiar, qual anjo-da-guarda, mas isso irritava-o.
Algumas vezes saía e esquecia-se das chaves dentro de casa, sendo obrigado a
esperar pelo regresso da mulher, para poder entrar.
Continuava
a escrever, mas por vezes tinha de pedir ajuda, pois já não conseguia
lembrar-se de certas funções do processador de texto. Procurava as letras, uma
a uma, já sem aqueles reflexos que o levavam antes a escrever rapidamente,
embora só com dois dedos.
Sentia-se
perdido no turbilhão da vida e, nos poucos momentos de relativa normalidade,
olhava-se de fora e via-se a viver num verdadeiro inferno. Ou seria o
purgatório, estando o inferno ainda para chegar?
Lurdes, ao acordar de noite, estranhou não sentir o
marido a seu lado. Acendeu a luz da mesinha de cabeceira e constatou que,
efectivamente, ele não estava. Levantou-se de um salto e dirigiu-se para a casa
de banho, que tinha a luz acesa. Também não estava. Assustada, abriu a porta do
escritório.
Ricardo
estava debruçado, inerte, sobre o teclado do computador. Na mão esquerda, um papel amarrotado com o
nome de um medicamento que tomava para dormir e com a indicação de que deveria
tomá-lo antes de se deitar. Na mão direita, um frasco desse mesmo medicamento,
aberto e já sem nenhum comprimido.
Lurdes
soltou um grito de angústia e, ao acariciar nervosamente a cabeça do marido,
activou o ecrã do monitor, onde pôde ler: «Etsa vdia asism nao persta… amo te mas vou pratir…».
Apesar
das letras trocadas, ela tudo entendeu e, de joelhos, chorou convulsivamente,
continuando a acariciar Ricardo. Veio-lhe à memória o dia do casamento e o
padre dizendo «…até que a morte vos
separe…».
Gabriel de Sousa
NB – 3º Prémio no X Concurso Literário Algarve – Brasil / 2007 – Clube da Simpatia – Olhão
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