sexta-feira, 6 de junho de 2014

CONTO OU PREMONIÇÃO?



MEMÓRIA PERDIDA

À medida que se aproximava a data da reforma, Ricardo Pereira ficava mais ansioso. Ia poder, finalmente, fazer aquilo que lhe apetecesse, ia ter tempo para se divertir e para viajar. Para viver!
Estava quase a completar os sessenta e cinco anos e cada idade, como é comum dizer-se, tem os seus encantos. Era agora um homem mais calmo, mais compreensivo, mais experiente e mais maduro.
O grande dia chegou. Fizeram-lhe uma festa, ofereceram-lhe uma prenda e ouviram-se lindos discursos. Assim deixava o “mundo”, que fora o seu durante tantos e tantos anos. Subira na profissão, degrau a degrau, sempre a pulso, tendo atingido o cume da carreira alguns anos antes de partir. Agora, punha ponto final numa longa vida de trabalho.
Ao voltar para casa naquela noite, sentia uma mistura de sentimentos, em que predominava já a saudade de tantos momentos que não se repetiriam mais. As “grandes férias” iam começar. Afinal, era o que nos últimos meses mais tinha desejado!

Os primeiros tempos foram uma festa. Teve tempo para fazer muitas coisas que antes não fazia. Voltou a ler bons livros e a ter tempo para escrever. Fez uma longa viagem ao Oriente com Lurdes, a sua companheira de mais de trinta anos. Visitou a Coreia do Sul, o Vietname, Hong-Kong e voltou a Macau, onde estivera quando o território ainda era administrado pelos portugueses.
Deu muitos passeios pelo país, sobretudo pelo interior norte, que praticamente não conhecia. Tinha, em suma, mais tempo para si. Quase se poderia dizer que tinha todo o tempo do mundo. Isto, porém, levava a que reparasse em certos pormenores que, se ainda estivesse no activo, nem teria tempo para observar nem para sentir.
Quem disse que cada idade tem os seus encantos, esqueceu-se decerto que os anos trazem sobretudo os desencantos. Os músculos tornam-se flácidos, impedindo esforços que se faziam antes com facilidade. Os ossos tornam-se frágeis e tem de se ter muito cuidado, evitando movimentos bruscos. A visão enfraquece e vê-se cada vez pior, apesar do uso dos óculos. A princípio ainda se faz um esforço para, por exemplo, ler as bulas dos medicamentos. Depois, desiste-se ou usa-se uma lupa. A audição começa a piorar. Pede-se às pessoas para repetir, mas elas muitas vezes demonstram o seu enfado. A pouco e pouco, olha-se para os lábios, não se ouve e sorri-se, sem compreender muitas das vezes o que os interlocutores estão a dizer.
O corpo, pouco a pouco, deforma-se e fica semeado de sinais, manchas e verrugas. A coluna ressente-se com as mudanças de tempo. As doenças aparecem. É todo um catálogo!
Assiste-se ao desaparecimento de familiares e amigos. E não só. Ao morrer alguém, logo comparamos a idade do “infeliz” com a nossa.
Tentamos adivinhar, a medo, como será a nossa despedida. Como será “isto”, depois de partirmos.
Ricardo, que tantas vezes maldissera a vida absorvente que levava e que não lhe deixava tempo sequer para a família, começou a desejar que a vida voltasse para trás. Como se sabe, porém, nunca ninguém o conseguiu, nem jamais o conseguirá.

Certo dia, Ricardo foi ao centro da cidade e, chegado lá, andou a ver montras e esqueceu-se completamente do que tinha ido lá fazer. Curiosamente, de manhã, tinha dito a sua mulher que iria marcar uma consulta no médico, pois achava que andava muito desmemoriado, tendo dificuldade em se lembrar de nomes, sobretudo de pessoas, no meio de uma conversa. Só reparou que tinha ido e vindo sem tratar de nada, quando já estava de regresso a casa. Voltou no dia seguinte.
Tinha ido a mais médicos durante estes quase três anos de reforma, do que durante o resto de toda a sua vida, mas agora andava mesmo preocupado, pois notava sinais de que algo não corria bem. Por vezes faltava-lhe vocabulário, tanto a falar como a escrever. Tinha dificuldade em se concentrar, repetindo vezes sem conta alguns rituais. Fazia determinadas tarefas e logo de seguida ficava na dúvida se as já tinha feito.
No dia marcado, foi ao médico que, atendendo à sua idade e aos sintomas referidos, o aconselhou a consultar um psiquiatra.

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- Senhor Pereira, embora eu não o possa afirmar de modo inquestionável, parece-me detectar em si os primeiros sintomas de uma doença de que já terá ouvido falar. Já é conhecida há mais de cem anos, mas agora fala-se mais porque as pessoas vivem mais tempo…
- ?
- Refiro-me à doença de Alzheimer!
- Segundo tenho ouvido dizer não há nada a fazer.
- Há sim! Sempre se pode fazer alguma coisa mas, realmente, esta doença é como a idade, não se pode parar. Vai fazer umas análises e vários exames que vou requisitar e depois se verá. Para já, continue a manter-se em actividade permanente, não só física mas sobretudo mental! Leia, escreva. Faça passatempos.
- Assim farei, senhor Doutor.

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Logo que chegou a casa, Ricardo ligou o computador e foi consultar a Internet, onde encontrou muita informação.
A doença de Alzheimer consiste, grosso modo, na morte das células cerebrais e na consequente atrofia do cérebro. É progressiva, irreversível e com causas e tratamentos ainda desconhecidos. Começa por atingir a memória e, progressivamente, atinge todas as outras funções mentais, levando à perda da autonomia dos doentes. Em fase terminal, provoca a incapacidade de realizar as tarefas mais primárias, os pacientes deixando mesmo de reconhecer as pessoas mais chegadas.
O único modo de diagnosticar a doença, com segurança, seria o exame do tecido cerebral, obtido através de uma biopsia. 
«Ao princípio, observam-se pequenos esquecimentos, perdas de memória, normalmente aceites pelos familiares como parte do processo normal de envelhecimento, que se vão agravando gradualmente. Os pacientes tornam-se confusos e, por vezes, agressivos, passando a apresentar alterações da personalidade, com distúrbios de conduta. Acabam por não reconhecer os próprios familiares e até a si mesmos quando colocados frente a um espelho».
Ricardo ficou ainda mais aterrorizado com o que tinha lido e resolveu não contar nada à mulher, para não a preocupar, antes de saber o resultado das análises e exames que o médico lhe mandara fazer.

Os auxiliares de diagnóstico requisitados pelo Dr. Silveira vieram confirmar, na medida do possível, o que ele tinha previsto. Receitou-lhe vários remédios, renovou o conselho de manter a mente em actividade e pediu-lhe para marcar uma nova consulta quando acabassem os medicamentos.
Ricardo chegou a casa e contou tudo, finalmente, à sua companheira, acrescentando:
- Dizem que a doença se desenvolve muito lentamente, até nos tornarmos completamente dependentes. Não sei o que o futuro me reserva, nem sei bem como tudo isso irá acontecer, mas desde já te digo que não quero chegar a esse ponto!
- Tem calma, Ricardo. Devias ter-me contado antes, pois para mim é também difícil receber a notícia assim de chofre. Temos enfrentado tantas situações menos boas…

E os dias começaram a escorrer por entre os dedos, como se fossem areia, com a doença a desenvolver-se de forma insidiosa e quase sem darem por isso.
Ricardo bem tentava ocupar o seu tempo, sobretudo a escrever, utilizando o computador adquirido quando se reformara.
Pouco a pouco, no entanto, começou a ter dificuldades em executar certas actividades manuais, sentindo-se ainda mais desajeitado do que já era antes. Custava-lhe fazer contas, guardava coisas em sítios de que depois não se lembrava. Tinha o pavor de perder objectos. Irritava-se com facilidade. Hesitava muito, antes de tomar alguma decisão. Cada vez tinha maiores dificuldades em se recordar de certos nomes, mas agora já nem fazia esforço para os relembrar.

Passaram-se meses, alguns anos. Já sentia pouco interesse por aquilo que o rodeava, evitava sair pois ao afastar-se, tinha dificuldade em regressar a casa, faltando-lhe o sentido de orientação.
Sentia que Lurdes o andava sempre a vigiar, qual anjo-da-guarda, mas isso irritava-o. Algumas vezes saía e esquecia-se das chaves dentro de casa, sendo obrigado a esperar pelo regresso da mulher, para poder entrar.
Continuava a escrever, mas por vezes tinha de pedir ajuda, pois já não conseguia lembrar-se de certas funções do processador de texto. Procurava as letras, uma a uma, já sem aqueles reflexos que o levavam antes a escrever rapidamente, embora só com dois dedos. 
Sentia-se perdido no turbilhão da vida e, nos poucos momentos de relativa normalidade, olhava-se de fora e via-se a viver num verdadeiro inferno. Ou seria o purgatório, estando o inferno ainda para chegar?

Lurdes, ao acordar de noite, estranhou não sentir o marido a seu lado. Acendeu a luz da mesinha de cabeceira e constatou que, efectivamente, ele não estava. Levantou-se de um salto e dirigiu-se para a casa de banho, que tinha a luz acesa. Também não estava. Assustada, abriu a porta do escritório. 
Ricardo estava debruçado, inerte, sobre o teclado do computador.  Na mão esquerda, um papel amarrotado com o nome de um medicamento que tomava para dormir e com a indicação de que deveria tomá-lo antes de se deitar. Na mão direita, um frasco desse mesmo medicamento, aberto e já sem nenhum comprimido.
Lurdes soltou um grito de angústia e, ao acariciar nervosamente a cabeça do marido, activou o ecrã do monitor, onde pôde ler: «Etsa vdia asism nao persta… amo te mas vou pratir…».
Apesar das letras trocadas, ela tudo entendeu e, de joelhos, chorou convulsivamente, continuando a acariciar Ricardo. Veio-lhe à memória o dia do casamento e o padre dizendo «…até que a morte vos separe…».

Gabriel de Sousa

NB – 3º Prémio no X Concurso Literário Algarve – Brasil / 2007 – Clube da Simpatia – Olhão

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