No Dia da Mulher
MULHER DE TALENTO (conto)
Era o último dia de aulas antes da Páscoa. A professora dirigia-se às suas alunas:
- Quando voltarem, depois das férias, vão trazer-me uma pequena composição contando a história de uma “mulher de talento”. Ao texto que eu considerar melhor ou mais original atribuirei uma obra de uma conhecida escritora portuguesa.
As miúdas entreolharam-se, meio atrapalhadas, sem saber o que dizer nem o que haveriam de escrever.
- Não se assustem, pois vou distribuir uma pequena lista onde poderão escolher entre vários nomes. Há para todos os gostos. Escritoras, Cientistas, Santas, Feministas, Desportistas, Políticas, Rainhas… Portuguesas e estrangeiras. Para conhecerem as respectivas vidas podem consultar enciclopédias que tenham lá em casa ou mesmo a Internet. Neste último caso não se limitem a copiar. Tomem conhecimento e utilizem as vossas próprias palavras, simples mas contando o essencial. Se alguém tiver dificuldades para estas pesquisas, fale-me após a aula, pois arranjarei modo de poderem vir aqui à Escola e terão tudo o que for necessário na Biblioteca.
A campainha tocou. As crianças arrumaram as coisas nas mochilas, levantaram-se e começaram a sair, recebendo a folha prometida e despedindo-se da professora, com votos de “Feliz Páscoa”.
Chuviscava um pouco, mas até sabia bem pois o tempo estava abafado. Sofia encaminhou-se para casa. Não era muito longe. Não tinha nenhuma enciclopédia, mas a mãe comprara-lhe um computador no mês anterior. Para evitar a despesa, porém, ainda não tinha ligação à Internet. Com a ajuda da mãe ou de alguma amiga, haveria de resolver o problema.
Quando chegou a casa, trocou impressões com a mãe. Olharam para a folhita amarrotada, que Sofia tirou no bolso e leram alguns nomes conhecidos, outros nem tanto: Florbela Espanca, Madame Curie, Joana d’Arc, Maria Lamas, Rosa Mota, Maria de Lurdes Pintasilgo, Rainha Santa Isabel e tantas outras. Nenhum dos nomes lhes despertou demasiada atenção.
- Mãe, vamos jantar e amanhã decidirei. Estou cansada, mas parece-me que até já tenho uma ideia!
No dia seguinte, bastante cedo, mal a mãe saiu para o trabalho, Sofia tomou banho, comeu o pequeno-almoço e sentou-se em frente do computador. Escreveu, apagou, emendou, tornou a escrever… Só deu por ser hora de almoço quando a mãe meteu a chave à porta.
- Mãezinha, já fiz praticamente o trabalho. Só mais umas emendas e estará pronto. Mas é surpresa. Quando recomeçarem as aulas, eu mostro-te.
A escola voltou a alegrar-se com o bulício das jovens. O toque da campainha fez parar as brincadeiras e todas se dirigiram para as respectivas salas de aula.
- Fizeram todas o trabalho que eu pedi? – Perguntou com um sorriso a professora Marília.
- Sim!!! Responderam em uníssono.
- Então, cada uma vai ler a sua história e eu vou tomando notas.
Quando chegou a vez de Sofia, esta levantou-se e, com voz a princípio tímida e depois um pouco mais solta, começou a ler: «Maria do Rosário vivia em Olhão, numa comunidade de pescadores. Cedo perdeu o pai e, meses mais tarde, a mãe. Ajudou a criar os três irmãos mais novos com o apoio da sua velha avó, que vivia de um rendimento mínimo que recebia desde a morte do seu homem, tragado pelas ondas do mar, que tão pródigo é a dar peixe, mas que por vezes tão impiedoso é a ceifar vidas. Mais tarde, foi servir para a casa de uma família abastada. Sendo uma bela moçoila, muitos eram os pretendentes, embora ela não fosse muito dada a namoricos. Até que um dia conheceu Isidoro, empregado nos Caminhos-de-Ferro. Amor à primeira vista e casamento meses depois.
Ficou grávida e o marido pediu-lhe para que ela trabalhasse apenas em casa para não se esforçar muito.
Uma noite, no regresso de um dia de trabalho, Isidoro despistou-se e embateu violentamente contra um camião TIR que vinha em sentido contrário. Esteve alguns dias em coma e não sobreviveu.
Maria do Rosário quase perdeu o interesse pela vida, mas lembrando-se do fruto que trazia no ventre, foi pedir trabalho aos antigos patrões. Num esforço quase sobre-humano inscreveu-se também numa escola para adultos com o intuito de tirar pelo menos a instrução primária e poder assim arranjar um emprego melhor e mais seguro.
Entretanto a criança nasceu. Era uma menina. Teve de ficar em casa, pois não tinha dinheiro para pagar a uma ama. Agarrou-se aos livros e continuou a estudar. Propuseram-lhe um emprego como “auxiliar” no Hospital. O ordenado mais a pequena pensão do marido chegavam para pôr a menina numa creche enquanto ia trabalhar e, poupando, ainda poderia pagar a uma ama durante umas horas para poder continuar a estudar à noite. Conseguiu completar o 9º ano de escolaridade e obteve a transferência para os Serviços Administrativos do Hospital.
A filha continuava a estudar. Maria do Rosário prometeu a si mesma que a filha haveria de ter os estudos que ela não conseguira ter. O talento não se mede apenas em descobertas, em obras-primas ou em resultados desportivos. Maria do Rosário tivera o sublime talento de saber ser Mulher e ser Mãe!»
Lidas estas palavras, Sofia começou a soluçar, escondendo a cara entre as mãos. Emocionada também, a professora perguntou-lhe quem era afinal esta Maria do Rosário.
- É a minha mãe, senhora professora!
As alunas, num gesto nunca antes visto, levantaram-se e aplaudiram com as lágrimas nos olhos. O prémio já tinha dona.
Quando chegou a casa, a mãe perguntou-lhe com ansiedade:
- Quem ganhou, minha filha?
- Ganhámos as duas, mãezinha! Eu ganhei este livro e tu… ganhaste o título da “Mãe Mais Talentosa do Mundo”!
Ficaram abraçadas longos minutos, misturando lágrimas, beijos e murmúrios.
Gabriel de Sousa
NB - Menção Honrosa nos 38ºs Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo - 2008 (Fuseta)
MULHER DE TALENTO (conto)
Era o último dia de aulas antes da Páscoa. A professora dirigia-se às suas alunas:
- Quando voltarem, depois das férias, vão trazer-me uma pequena composição contando a história de uma “mulher de talento”. Ao texto que eu considerar melhor ou mais original atribuirei uma obra de uma conhecida escritora portuguesa.
As miúdas entreolharam-se, meio atrapalhadas, sem saber o que dizer nem o que haveriam de escrever.
- Não se assustem, pois vou distribuir uma pequena lista onde poderão escolher entre vários nomes. Há para todos os gostos. Escritoras, Cientistas, Santas, Feministas, Desportistas, Políticas, Rainhas… Portuguesas e estrangeiras. Para conhecerem as respectivas vidas podem consultar enciclopédias que tenham lá em casa ou mesmo a Internet. Neste último caso não se limitem a copiar. Tomem conhecimento e utilizem as vossas próprias palavras, simples mas contando o essencial. Se alguém tiver dificuldades para estas pesquisas, fale-me após a aula, pois arranjarei modo de poderem vir aqui à Escola e terão tudo o que for necessário na Biblioteca.
A campainha tocou. As crianças arrumaram as coisas nas mochilas, levantaram-se e começaram a sair, recebendo a folha prometida e despedindo-se da professora, com votos de “Feliz Páscoa”.
Chuviscava um pouco, mas até sabia bem pois o tempo estava abafado. Sofia encaminhou-se para casa. Não era muito longe. Não tinha nenhuma enciclopédia, mas a mãe comprara-lhe um computador no mês anterior. Para evitar a despesa, porém, ainda não tinha ligação à Internet. Com a ajuda da mãe ou de alguma amiga, haveria de resolver o problema.
Quando chegou a casa, trocou impressões com a mãe. Olharam para a folhita amarrotada, que Sofia tirou no bolso e leram alguns nomes conhecidos, outros nem tanto: Florbela Espanca, Madame Curie, Joana d’Arc, Maria Lamas, Rosa Mota, Maria de Lurdes Pintasilgo, Rainha Santa Isabel e tantas outras. Nenhum dos nomes lhes despertou demasiada atenção.
- Mãe, vamos jantar e amanhã decidirei. Estou cansada, mas parece-me que até já tenho uma ideia!
No dia seguinte, bastante cedo, mal a mãe saiu para o trabalho, Sofia tomou banho, comeu o pequeno-almoço e sentou-se em frente do computador. Escreveu, apagou, emendou, tornou a escrever… Só deu por ser hora de almoço quando a mãe meteu a chave à porta.
- Mãezinha, já fiz praticamente o trabalho. Só mais umas emendas e estará pronto. Mas é surpresa. Quando recomeçarem as aulas, eu mostro-te.
A escola voltou a alegrar-se com o bulício das jovens. O toque da campainha fez parar as brincadeiras e todas se dirigiram para as respectivas salas de aula.
- Fizeram todas o trabalho que eu pedi? – Perguntou com um sorriso a professora Marília.
- Sim!!! Responderam em uníssono.
- Então, cada uma vai ler a sua história e eu vou tomando notas.
Quando chegou a vez de Sofia, esta levantou-se e, com voz a princípio tímida e depois um pouco mais solta, começou a ler: «Maria do Rosário vivia em Olhão, numa comunidade de pescadores. Cedo perdeu o pai e, meses mais tarde, a mãe. Ajudou a criar os três irmãos mais novos com o apoio da sua velha avó, que vivia de um rendimento mínimo que recebia desde a morte do seu homem, tragado pelas ondas do mar, que tão pródigo é a dar peixe, mas que por vezes tão impiedoso é a ceifar vidas. Mais tarde, foi servir para a casa de uma família abastada. Sendo uma bela moçoila, muitos eram os pretendentes, embora ela não fosse muito dada a namoricos. Até que um dia conheceu Isidoro, empregado nos Caminhos-de-Ferro. Amor à primeira vista e casamento meses depois.
Ficou grávida e o marido pediu-lhe para que ela trabalhasse apenas em casa para não se esforçar muito.
Uma noite, no regresso de um dia de trabalho, Isidoro despistou-se e embateu violentamente contra um camião TIR que vinha em sentido contrário. Esteve alguns dias em coma e não sobreviveu.
Maria do Rosário quase perdeu o interesse pela vida, mas lembrando-se do fruto que trazia no ventre, foi pedir trabalho aos antigos patrões. Num esforço quase sobre-humano inscreveu-se também numa escola para adultos com o intuito de tirar pelo menos a instrução primária e poder assim arranjar um emprego melhor e mais seguro.
Entretanto a criança nasceu. Era uma menina. Teve de ficar em casa, pois não tinha dinheiro para pagar a uma ama. Agarrou-se aos livros e continuou a estudar. Propuseram-lhe um emprego como “auxiliar” no Hospital. O ordenado mais a pequena pensão do marido chegavam para pôr a menina numa creche enquanto ia trabalhar e, poupando, ainda poderia pagar a uma ama durante umas horas para poder continuar a estudar à noite. Conseguiu completar o 9º ano de escolaridade e obteve a transferência para os Serviços Administrativos do Hospital.
A filha continuava a estudar. Maria do Rosário prometeu a si mesma que a filha haveria de ter os estudos que ela não conseguira ter. O talento não se mede apenas em descobertas, em obras-primas ou em resultados desportivos. Maria do Rosário tivera o sublime talento de saber ser Mulher e ser Mãe!»
Lidas estas palavras, Sofia começou a soluçar, escondendo a cara entre as mãos. Emocionada também, a professora perguntou-lhe quem era afinal esta Maria do Rosário.
- É a minha mãe, senhora professora!
As alunas, num gesto nunca antes visto, levantaram-se e aplaudiram com as lágrimas nos olhos. O prémio já tinha dona.
Quando chegou a casa, a mãe perguntou-lhe com ansiedade:
- Quem ganhou, minha filha?
- Ganhámos as duas, mãezinha! Eu ganhei este livro e tu… ganhaste o título da “Mãe Mais Talentosa do Mundo”!
Ficaram abraçadas longos minutos, misturando lágrimas, beijos e murmúrios.
Gabriel de Sousa
NB - Menção Honrosa nos 38ºs Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo - 2008 (Fuseta)
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